Quando o Céu se Engana

 

Aziz Ansari transforma o riso em manifesto ainda que nem sempre saiba o que fazer com ele. Em Quando o Céu se Engana, o humor se apresenta como bisturi: leve na superfície, mas nem sempre preciso no corte. A trama parte de uma ideia conhecida como a troca de vidas entre um pobre e um rico para tentar desmontar o mito contemporâneo da meritocracia como justiça divina.

Tudo começa quando um anjo desiludido, interpretado por um Keanu Reeves deliciosamente apático, decide “corrigir” o destino de duas pessoas. Arj (o próprio Ansari) é um trabalhador sufocado por dívidas e exaustão; Jeff (Seth Rogen), um milionário entediado que reclama por esporte. A inversão de papéis serve de motor para uma comédia que aspira à crítica social, mas por vezes se contenta em rir do próprio artifício.

Ansari dirige com a convicção de quem enxerga o absurdo da desigualdade, mas o resultado oscila entre sátira e esquete. O contraste entre classes não é retratado como choque, e sim como continuidade: um sistema que se retroalimenta, disfarçado de oportunidade. O humor, que deveria revelar as fissuras dessa estrutura, acaba se diluindo na previsibilidade das situações como se o filme risse antes de nós, pedindo aplausos por sua própria esperteza.

Keanu Reeves é o eixo melancólico dessa alegoria: um anjo burocrata, cansado e impotente diante da própria função. Sua presença celestial confere ao filme um tom quase kafkiano, mas também revela o limite da proposta o divino e o banal se confundem tanto que o olhar crítico se perde. A fotografia reforça essa ambiguidade: o brilho branco do “céu” é tão frio e impessoal quanto o luxo da vida milionária.

O roteiro, coescrito por Ansari, evita moralismos explícitos, mas tropeça no moralismo da autossuficiência estética o de quem acredita que ironia basta para dizer algo profundo. Há momentos em que o desconforto se impõe e o riso se transforma em reflexão; outros em que a leveza soa cálculo. No fim, a sátira parece mais interessada em provar sua inteligência do que em provocar o espectador.

Ainda assim, Quando o Céu se Engana acerta ao compreender que rir da desigualdade não precisa significar rir de quem sofre com ela. Ansari humaniza o fracasso e ridiculariza a crença de que ele é culpa individual. É uma comédia política sem panfleto, mas também sem a contundência que promete como se faltasse ao céu não apenas fé, mas vontade de olhar para baixo.

No desfecho, não há milagres nem epifanias: apenas a constatação de que até os anjos se cansaram da própria função. E talvez resida aí a força que o filme tenta alcançar, na melancolia de perceber que, quando o céu se engana, o inferno é apenas a rotina que já vivemos.

Por Mauro Senna


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