Hilda Furacão – A Ópera

 

Que se fechem os templos e se abram os bordéis porque "Hilda Furacão – A Ópera" não reza por cartilha alguma, muito menos pelas santas. É um libelo lírico contra a fé cega, um oratório de devassidão consciente, que não apenas flerta com a blasfêmia: leva-a para jantar, dança com ela até tarde, e ainda lhe escreve um libreto apaixonado. Concebida por Tim Rescala com direção musical de Rodrigo Toffolo e cênica de Julliano Mendes, esta ópera não é um espetáculo: é um atentado estético contra a moralidade domesticada.

Inspirada na lenda urbana mais imoral e irresistível de Belo Horizonte, a obra não tenta redimir Hilda, ela a celebra como ícone de insubmissão. A cortesã que troca os salões da elite pelos lençóis da zona boêmia torna-se aqui uma anti-Madonna, uma santa invertida que não cura pecados, mas os escancara com uma gargalhada operística. Carla Rizzi a interpreta como quem cospe no altar e depois canta um agudo perfeito um tour de force que rejeita o perdão como moeda de troca.

E se Hilda nega a salvação, Frei Malthus (Jabez Lima) parece um crente à deriva, afogado em sua própria libido. Sua crise de fé é cantada com tamanho desespero que beira o indecente e ainda assim, é impossível desviar os olhos (ou os ouvidos). Jabez canta como quem se flagela, e o resultado é de uma beleza suja, quase sacrílega. Uma ópera que se preze precisa de um sacrifício, e ele se oferece inteiro.

Mas não há santos nessa história. Fernando Portari, corrosivo e lúcido, é o bufão iluminado da peça, seu ceticismo não é alívio cômico, é denúncia. Ele sabe que os valores que caem do púlpito são tão podres quanto os que escorrem do bordel, e sua voz, aguda como uma navalha, corta qualquer ilusão de pureza.

A montagem, fiel à desordem que encena, não oferece céu nem inferno, apenas um purgatório à brasileira, onde os figurinos de Paula Gascon vestem os personagens com a indecisão estética de um país que se ajoelha diante do divino e do kitsch com igual fervor. Luiz Abreu assina uma direção de arte que faz do palco um terreno entre o barroco e o brega, um altar profanado onde não se busca Deus, mas o espelho. Aliás, os espelhos são muitos e todos eles deformam.

A luz de Adriano Vale é de um sadismo iluminado: ora expõe, ora cega, e nunca consola. Em "Hilda Furacão", a iluminação não guia, denuncia. É o reflexo de uma fé desbotada, de uma moral em colapso. O cenário de Carol Gomes, com suas estruturas instáveis, é mais do que metáfora: é um palco que se recusa a firmar chão, um espaço sem certezas onde até a gravidade parece relativa.

E se a música de Rescala costura todos esses abismos com ironia e lirismo, é o som de Bruno Corrêa que dá carne ao escândalo: não há espaço para delicadezas quando o tema é a hipocrisia de um país que reza com uma mão e apedreja com a outra.

Hilda Furacão – A Ópera é uma heresia cantada em tom maior. Um espetáculo que não pede licença à fé nem se ajoelha diante da dúvida. Sua coragem está justamente em se comprometer com o descompromisso religioso, em afirmar que, no fim das contas, talvez o único sagrado seja a liberdade mesmo que ela venha embriagada, maquiada demais e de salto alto.

Não é uma obra para os que buscam consolo. É para os que preferem a vertigem à certeza, o desejo à doutrina, e a arte essa deusa pagã, à penitência.

Amém? Aqui, só se for de sarcasmo.

Por Mauro Senna


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