O Dia em que Raptaram o Papa


Em uma paisagem teatral contemporânea dominada por discursos urgentes — anticoloniais, antiteocráticos, antissistêmicos —, a escolha por encenar "O Dia em que Raptaram o Papa", de João Bethencourt, soa como um gesto, no mínimo, peculiar. A obra se volta para o Vaticano não com a intenção de atacar, mas de conciliar, trocando as flechas por um tom mais brando, quase afetuoso.

Sob a direção de Cristina Bethencourt, filha do autor, a montagem atual carrega a ambiguidade de uma comédia escrita nos anos 1970 que, ao subir ao palco em 2025, busca reverberar crítica sem, contudo, provocar confronto. O ponto de partida é intrigante: um taxista judeu sequestra o Papa durante uma visita a Nova York. Contudo, em vez de tensionar o poder simbólico e material de uma das instituições mais controversas da história ocidental, o espetáculo adota um tom quase litúrgico de conciliação.

O texto original oscila entre a sátira e a diplomacia, frequentemente cedendo à segunda. Ao exigir um "dia sem mortes no mundo" como condição para libertar o pontífice, o protagonista Sam Leibowitz (vivido por Claudio Mendes) resgata um humanismo sentimental que busca redenção em meio à tragédia, e não a irreverência do teatro político. Embora haja beleza nessa abordagem, em um palco que poderia ser território de heresia crítica, a dramaturgia se contenta com a prece.

Giuseppe Oristanio, no papel do Papa Alberto IV, compõe uma figura serena, quase pastoral. Sua ausência de tensão dramatúrgica transforma o sequestro menos em um ato subversivo e mais em uma excentricidade com ares de fábula moral. O elenco — formado por Elisa Pinheiro, Beatriz Linhales, Samuel Valladares e Gustavo Ottoni — encarna com elegância os arquétipos familiares que orbitam o "cativeiro", que mais se assemelha a um retiro inter-religioso do que a um embate ideológico. A participação especial de Nando Cunha completa o elenco com profissionalismo, mas sem provocar grandes rupturas no tecido dramatúrgico.

A direção de Cristina Bethencourt é precisa nos aspectos formais, mas excessivamente reverente no tratamento do conteúdo. Em tempos de revisionismo teológico — quando pensadores como Bart D. Ehrman, Richard Dawkins e Gianni Vattimo já pulverizaram as certezas do dogma —, a escolha por um tom afável e "respeitoso" dilui o impacto crítico que o texto poderia alcançar. Raptar o Papa, nesta encenação, torna-se uma curiosidade alegórica — e não uma profanação crítica.

O projeto cenográfico de José Dias sugere uma espacialidade simbólica entre o terreno e o divino, embora essa dualidade não se manifeste com vigor na encenação. Os figurinos de Ronald Teixeira e Pedro Stanford, historicamente informados, evitam qualquer indício de ironia estética. A iluminação de Rogério Wiltgen contribui com delicadeza para a ambiência intimista, enquanto a trilha sonora de Chico Beltrão reforça essa atmosfera acolhedora, como se buscasse afastar qualquer possibilidade de estranhamento.

Tudo na peça é eficaz, funcional e previsivelmente seguro. O teatro que ousa tocar o sagrado — de Genet a Sarah Kane, de Saviana Stănescu a Gerald Thomas — compreende que a blasfêmia, mais do que ofensa, é instrumento de desobstrução simbólica. Neste caso, a peça prefere orar junto aos fiéis. É possível rir, sim — mas um riso condicionado, quase eclesiástico, como quem ainda teme o relho da doutrina.

Ao final, "O Dia em que Raptaram o Papa" oferece uma experiência agradável e espiritualmente conciliadora, mas artisticamente tímida. Em um tempo em que o sagrado merece ser dissecado, não santificado, a montagem escolhe ocultar sob véus aquilo que deveria ser exposto à luz, adotando um tom respeitoso que soa mais como um resquício datado dos anos 70.

Por Mauro Senna


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