Cala a Boca e Me Beija

 

Digamos que o amor seja uma ideia falida — um condomínio em crise emocional, onde ninguém quer remunerar o síndico pelos préstimos à coletividade e todos temem a famigerada reunião de casal, marcada em primeira chamada para as 19h. Sob esse olhar, Cala a Boca e Me Beija não é exatamente uma peça sobre o amor, mas sobre o que acontece quando duas pessoas decidem continuar juntas, mesmo quando a louça suja já se tornou o terceiro elemento da relação. Tudo isso é dito com a verve de quem tomou café expresso demais e leu Freud de cabeça para baixo.

O texto de Bia Montez e Fátima Valença funciona como um diário de neurose a dois: frenético, engraçado, tragicômico — e, em certos momentos, assustadoramente próximo da realidade. Não por falar de amor, mas por dissecar o cotidiano com um bisturi cômico e embrulhar tudo num papel de presente amassado, com laço frouxo e um bilhete: “Me desculpa, foi o que deu pra fazer.”

O diretor Ernesto Piccolo, por sua vez, assume o comando com a elegância nervosa de um maître num restaurante francês onde, por coincidência, todos os casais decidiram terminar o relacionamento ao mesmo tempo. Sua direção é meticulosamente caótica: um balé de absurdos domésticos conduzido com uma precisão neuroticamente calculada. Ele entende que, no amor, timing é tudo — e, às vezes, até o timing falha de propósito.

Vannessa Gerbelli, que interpreta Socorro (nome sugestivo — quase um spoiler), é uma musa trágica da TPM existencial. Ela não atua: sobrevive em cena, com o humor ácido de quem sabe que amar é um esporte de alto risco — e que, a qualquer momento, o outro pode esquecer o aniversário de namoro… de novo.

Charles Myara, no papel de Ronaldo, é um espécime do Homo sapiens emocionalmente disfuncional: um homem que tenta resolver seus conflitos conjugais com a mesma habilidade com que montaria um móvel do IKEA — sem manual. Seu timing cômico é milimétrico, mas é no olhar confuso e terno que ele nos captura — como se dissesse: “Não faço ideia do que estou fazendo aqui, mas, ainda assim, estou tentando.”

O cenário de Clívia Cohen é uma cápsula de claustrofobia amorosa — um lar, uma prisão, um campo de guerra onde travesseiros se transformam em mísseis emocionais e a televisão está sempre ligada no canal da indiferença. É real demais. Incômodo demais. Um pretérito mais-que-perfeito do desgaste afetivo.

Helena G. Myara acerta em cheio nos figurinos: roupas que parecem ter saído de um domingo de ressaca emocional. Nada é despretensioso — nem o moletom puído, nem a lingerie de uma esperança já desgastada. Tudo fala.

A iluminação de Fernanda Mantovani é quase psicanalítica: acende os traumas, escurece os desejos e, vez ou outra, lança uma luz cínica sobre as boas intenções que pavimentam o caminho para mais uma DR.

A trilha sonora, comandada por Rodrigo Penna, é uma comédia à parte — um mix que vai do romântico surrado ao irônico escancarado. Se o amor fosse um gênero musical, talvez fosse esse: um bolero que desafina e termina em silêncio constrangedor.

Isabela Callado, na preparação corporal, transforma discussões em danças e silêncios em coreografias. Há passos que dizem mais do que qualquer declaração de amor — especialmente quando alguém esbarra na quina da mesa no meio de uma crise existencial… e ninguém se oferece para buscar gelo.

Cala a Boca e Me Beija é o que aconteceria se Woody Allen escrevesse uma peça depois de passar uma semana trancado num flat no Leblon com um casal em crise, dois gatos, uma cafeteira quebrada e um terapeuta conjugal que só atende por WhatsApp. É engraçado, incômodo, desesperador e, no fundo, inevitavelmente real.

O espectador não sai do teatro com respostas. Sai com perguntas. E, talvez, com uma vontade súbita de mandar mensagem pro ex às duas da manhã, perguntando se ele ainda tem aquele moletom que você esqueceu. Não pelo moletom — mas pela desculpa de lembrar que, apesar de tudo, houve amor. E talvez ainda haja.

Por Mauro Senna


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