Alguma Coisa Podre

 

Alguma Coisa Podre

Caso Shakespeare ressurgisse de suas próprias cinzas a ponto de testemunhar a forma com a qual sua carreira como escritor, dramaturgo e ator estaria sendo levada aos palcos pelo musical “Alguma Coisa Podre”, certamente ajustaria seu tão reconhecido verso “ser ou não ser” para “ver ou não ver” a tragédia mais célebre de sua autoria transformada numa paródia musical.

Irreverências à parte, o fato é que “Alguma Coisa Podre” detém a capacidade de transportar uma plateia lotada para um universo ambientado em plena era elizabetana, no século XVI, e fazê-la se deliciar com uma comédia inteligente, temperada com pitadas de loucura.

A história gira em torno da carreira em meio à dramaturgia, ainda inglória, dos irmãos Rêgo Soutto – interpretados com impecável habilidade cômica de Marcos Veras (Nick) e sob a vibrante energia juvenil de Leo Bahia (Nigel), em desenfreada busca pela criação de uma peça teatral de sucesso. No entanto, um obstáculo considerável se interpõe entre os irmãos e sua meta: ninguém menos que o bardo de Avon, em carne e osso, magnificamente encarnado por George Sauma, cujo carisma abrilhanta, de forma esfuziante, a figura icônica de Shakespeare.

Determinados a superar o já consagrado sucesso do renomado bardo, os irmãos Rêgo Soutto recorrem à orientação de um peculiar vidente, incorporado por Wendell Bendelack, que concebe o sobrinho de astrólogo, médico e vidente francês Nostradamus, batizado com o mesmo nome, contemplando excentricidade extrema ao ponto de rivalizar, até mesmo, as previsões de Márcia Sensitiva – tão confiáveis quanto as palavras de um profeta das tabernas.

A adaptação do texto da comédia musical de autoria de John O'Farrell e Karey Kirkpatrick por Gustavo Barchilon, contemplando a versão brasileira assinada por Claudio Botelho, presenteia o público apreciador de espetáculos musicais, com uma série de jogos de palavras, trocadilhos geniais e referências a obras de sucesso do gênero. Transitando por entre títulos e nomes de personagens, desde os mais brilhantes aos mais obscuros, a narrativa de “Alguma Coisa Podre” culmina na concepção e na montagem de um espetáculo tributo... aos ovos – “Omelete”, numa ousada irreverência à obra dramática shakespeariana mais adaptada e encenada nos palcos de todo o mundo – “Hamlet”, ainda não concebida na ocasião em que a trama se desenrola.

O genuíno encanto de “Algo Podre” reside no formato lúdico com que o texto lida com a história e com os estereótipos do teatro. Shakespeare é retratado como uma estrela do rock do século XVI, seguido por fãs à beira da histeria e tomado por um ego do tamanho do Globe Theatre. Paralelamente, Nostradamus prevê os próximos grandes sucessos do teatro com a mesma precisão de uma ampulheta entupida.

Os números coreografados contam com a precisão e energia de Alonso Barros, emparelhando a tipologia do espetáculo aos níveis das apresentações na Broadway. Enquanto isso, a orquestra regida por Thiago Gimenes e a qualidade sonora projetada pelos designers de Som Tocko Michelazzo e Gabriel Bocutti garantem uma experiência auditiva impecável. O figurino de Fábio Namatame, minuciosamente desenhado, juntamente com o cenário concebido por Duda Arruk, refletem a atmosfera renascentista e enriquecem o universo visual do espetáculo. Em compasso com a coreografia, som e dramaturgia, o deslumbrante desenho de luz Maneco Quinderé se faz presente a cada momento, como se atingisse a alma do espectador com a mesma intensidade, ritmo e temperatura de cor que se alastram boca de cena a dentro e a fora.

Embora o percentual de drama e de romance seja desprezível no contexto da comédia, "Alguma Coisa Podre" não poupa os exageros contemplando humor inteligente e números musicais intensamente contagiantes, convertendo uma noite qualquer em experiência teatral inesquecível.

 

resenha: psales e msenna


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