Srª Klein

 

A dinâmica entre Melanie e Melitta Klein – mãe e filha que incorporam os papéis de titãs da psicanálise – é levada aos palcos do teatro através de um tumultuado embate, a partir do qual gritos ecoam além das paredes dos consultórios de psicanálise, ao mesmo tempo que transcendem os laços familiares. O ranço de ironia exalado pela relação familiar não poderia ser mais pungente. As cobaias eleitas para o pioneiro estudo de Melanie não foram outras senão os seus próprios rebentos – Melitta e Hans.

Dessa forma, com requintes de permissividade leviana, o dramaturgo Nicholas Wright abre guarda para que o sadismo contamine a sua imaginação e presenteia a plateia com o confronto entre mãe e filha, ladeadas por Paula – uma discípula devota da matriarca. Tal encontro se desenrola nos escombros deixados pelo suicídio do filho Hans, numa Londres primaveril de 1934. Se apropriando da tradução de Thereza Falcão, como se proferisse um texto concebido com base em suas verdades, Ana Beatriz Nogueira encarna Melanie, ao mesmo tempo em que Natália Lage assume o papel de Melitta e Kika Kalache dá vida a Paula, numa dança visceral e exasperante cuja coreografia é definida pela psique de cada um dos personagens.

A dramaturgia desnuda a figura de Melanie, ora materna e cruel, ora brilhantemente astuta e mergulha, num primeiro momento, em mar repleto de conceitos básicos da tríade id, ego e superego, e se lança nas entranhas dos abismos mais sombrios, onde o bem e o mau, oriundos das mentes das Kleins, se confrontam.

Não obstante, o fascínio que tais referências exercem sobre o público leigo na disciplina psicológica e que lhes desenham momentos de um conflito tão visceral entre mãe e filha, transbordam em instantes memoráveis, até mesmo, hilários.

A direção de Victor Garcia Peralta abraça a complexidade e a humanidade dessas mulheres, e define registros realistas a partir de uma ficção inserida numa atmosfera claustrofóbica, capazes de serem assimilados pela plateia tomada pela identidade do drama que se desenrola no palco. 

O cenário de Dina Salem Levy é concebido segundo uma instalação contemplando cadeiras dispostas como peças de um jogo macabro, e que desmorona diante dos olhos do observador, em total reprodução de ruínas, tanto dos conceitos teóricos quanto das relações familiares. O desenho de luz de Bernardo Lorga, frio e impiedoso, intensifica a sensação de aprisionamento, enquanto que os figurinos de Karen Brusttolin, em largo espectro de tons de cinza, ecoa o luto pela morte de Hans. Rafael Fernandez concebe o visagismo como agente responsável pela definição de camadas temporais ao encontro,  cronometrados por cada uma das personagens. A trilha sonora de Marcelo H. pontuada com parcimônia ao final do espetáculo, confere a austeridade aos diálogos prévios, conferindo ritmo às sequências finais sem jamais ceder ao melodrama.

"Sra. Klein" expõe os frangalhos de numa família imersa em relações tóxicas autoimunes, conferindo ao espetáculo teatral momentos de deleite aos pseudo-psicólogos e pseudo-psicanalistas em sua maioria na plateia, ávidos por explorar conceitos tão intrincados. Trata-se de uma encenação com um texto afiado, uma estética cativante e um elenco hábil e competente. Uma jornada através de teorias, esnobismo e narcisismo, tendo um reflexo afiado sobre a vaidade humana, é uma experiência imperdível.

resenha: psales e msenna 

foto:msenna

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