(Um) Ensaio sobre a Cegueira – Grupo Galpão

 

Sob a direção e dramaturgia de Rodrigo Portella, o Grupo Galpão apresenta em (Um) Ensaio sobre a Cegueira muito mais do que uma adaptação do romance de José Saramago: trata-se de um ritual cênico, que nos convida a desaprender o olhar para redescobrir outras formas de perceber o mundo.

A encenação se constrói na transparência dos próprios mecanismos teatrais. São os atores que iluminam o palco, movimentam os objetos de cena, narram o invisível e, com tão pouca materialidade, nos oferecem imagens mentais de uma força arrebatadora. Nada está oculto — e, exatamente por isso, tudo se torna mais denso. Ao recusar o realismo, o espetáculo abre um espaço generoso ao espectador: o de completar com a imaginação aquilo que falta, tornando-se cúmplice de uma criação coletiva.

O gesto de sugerir em vez de mostrar transforma-se, aqui, numa verdadeira ética da encenação. Cenas de violência e de intimidade, por exemplo, são construídas com gestos mínimos e palavras contidas. Não se trata de suavizar, mas de preservar a potência do não-dito. A direção aposta naquilo que não se vê — não como ausência, mas como um excesso de significados. A cegueira, nesse contexto, torna-se método e metáfora.

Aos poucos, o espetáculo retira o espectador de seu lugar de conforto. Quando parte da plateia é convidada a subir ao palco e vendar os olhos, não se trata de mero artifício de participação, mas de um deslocamento simbólico: os cegos somos todos nós. A cena se converte em espaço de contágio. A ação se deixa contaminar pela presença. A narrativa, por sua vez, abandona a distância da ficção e se insinua como possibilidade real, que nos toca e nos atravessa.

Nesse escuro expandido, o som ganha protagonismo. A trilha sonora ao vivo, criada por Federico Puppi, não apenas ambienta, mas sustenta a dramaturgia nos momentos em que a visão se perde. A escuta, ampliada pela falta, passa a ser canal privilegiado de percepção de um mundo em colapso. Há ruídos, ressonâncias, silêncios: o som se impõe como matéria viva, carregada de emoção.

O figurino assinado por Gilma Oliveira acompanha, de forma sensível, o processo de deterioração: do reconhecimento ao anonimato, da identidade à massa indistinta. O desgaste dos trajes não é mero detalhe visual, mas uma extensão da própria narrativa, refletindo o avanço da cegueira coletiva e reafirmando o estado de ruína em que mergulham os personagens — e, com eles, o mundo.

O elenco — Antonio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones — atua em uníssono, como um organismo vivo. Não há protagonismo, há partilha. Cada gesto se constrói em conjunto, com precisão rítmica e escuta atenta. O Grupo Galpão reafirma sua identidade de criação coletiva, agora sob uma estética mais despojada, mas não menos potente, reafirmando a força de um trabalho que só existe plenamente no encontro entre todos.

Há momentos em que a respiração da plateia simplesmente se suspende. Como na cena em que as mulheres retornam do pavilhão após os abusos sofridos. A imagem, bruta e sem palavras, carrega em silêncio aquilo que não pode ser dito. O impacto é direto e profundo. É teatro que nos fere — mas não para ferir gratuitamente, e sim para despertar, para confrontar, para nos devolver ao mundo mais atentos.

Ao optar por contar uma história com começo, meio e fim — gesto cada vez mais raro em parte da produção teatral contemporânea —, o espetáculo resgata a potência da narrativa como herança ancestral. Contar histórias ainda importa. Mais que isso: continua a nos transformar.

Por Mauro Senna


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