Gente de Bem

 

Longe de qualquer intenção de iniciar esta crítica com um spoiler, este prólogo se permite lançar luz sobre a forma como o espetáculo se anuncia: com o elenco em cena antes mesmo que os espectadores adentrem a sala. Ali, já nos corredores, eles nos dão boas-vindas — personagens ou não, recepcionam o público com uma presença silenciosa. Uma vez no interior do teatro, o que se vê é um grupo diluído no espaço cênico: caminham, sentam, se olham, cruzam olhares com quem chega. Estão ali não para agir, mas para estar. E assim, mesmo antes do início oficial da peça, o público se vê inserido no jogo: como se cada espectador fosse parte de cada personagem, e cada personagem, reflexo possível de quem assiste.

Sob a direção precisa de Adriana Maia, Gente de Bem confronta intencionalmente o consciente e o subconsciente do espectador — que pode reagir à dramaturgia das formas mais inusitadas, inclusive abandonando a plateia ao se dar conta de que o texto revela o que há de mais obscuro dentro de si. Adaptada de Necrochorume e outros contos, livro de João Ximenes Braga, a montagem não poupa o público de revelações lastimáveis sobre a essência humana, conduzidas com acidez, ironia e desconforto. Trata-se de um teatro que nega a conciliação e assume, sem titubear, seu lugar no front da crítica social e política.

Em cena, treze atores — Alexandre Damascena, Ana Achcar, Anna Wiltgen, Camí Boer, Dadá Maia, Gilberto Goés, Henrique Manoel Pinho, José Ângelo Bessa, Mariana Consoli, Miguel Ferrari, Pamela Alves, Stefania Corteletti e Xando Graça — interpretam fragmentos de uma elite que se acredita esclarecida, civilizada e, em certa medida, progressista, mas que, aos poucos, revela suas fissuras, seus medos coloniais e seu desejo de controle.

A peça é estruturada em seis quadros — “Urina”, “Café”, “Carne”, “Whiskie”, “Esgoto” e “Asco e Açúcar” — que se alternam em diferentes dias de apresentação. Ao final, há ainda um sétimo quadro, “Soro”. A dramaturgia opera como um raio-X moral do Brasil contemporâneo: diálogos curtos, personagens quase caricaturais e situações absurdamente reais compõem um mosaico de pequenas violências cotidianas — o racismo velado, o machismo domesticado, o moralismo seletivo e o reacionarismo travestido de bom senso.

O texto de João Ximenes Braga é afiado e direto. Conhecido por seu trabalho em novelas como Lado a Lado e Babilônia — onde lutou por representatividade racial e enfrentou resistências internas da indústria —, Braga agora escreve sem as amarras da TV aberta. O resultado: uma dramaturgia mais ácida, mais incômoda e, sobretudo, mais necessária.

A dramaturgia, assinada por Adriana Maia e Xando Graça, estrutura os contos numa sequência fluida e devastadora. Não há arco de redenção. Não há personagens a serem salvos. A peça lança o público no centro do desconforto e exige atenção, consciência e escuta. Não há concessões ao incômodo do espectador.

A direção musical de André Poyart adiciona camadas sonoras sutis, quase cínicas, enquanto a iluminação de Anderson Ratto não busca embelezar — ilumina para expor.

Em entrevistas recentes, João Ximenes Braga afirmou que “a cultura é um escudo contra o fascismo”. Gente de Bem assume essa responsabilidade com firmeza. O espetáculo transforma o palco em arena política e estética, onde os discursos polidos da “gente correta” são desmontados — palavra por palavra.

A montagem exige do público um posicionamento. O riso vem, mas é um riso atravessado, desconfortável — porque rir de Gente de Bem é, em alguma medida, rir de si mesmo. Ou, ao menos, daqueles que frequentamos, ouvimos... ou fingimos não perceber.

Gente de Bem é mais do que uma peça: é um espelho fiel. Ao expor as contradições da elite brasileira com humor cruel e inteligência crítica, o espetáculo cumpre um papel essencial em tempos de apagamento cultural e revisionismo político. E faz isso sem abrir mão da forma — porque, aqui, a estética também é arma.

Por Mauro Senna


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