O Bem-Amado

 

O Bem-Amado

O espetáculo O Bem-Amado, dirigido por Marcus Alvisi e inspirado na obra de Dias Gomes, propõe, com ousadia, revisitar questões sociais e políticas ainda pulsantes. A montagem resgata a farsa clássica, com conflitos enraizados na corrupção, na manipulação e na decadência das instituições. Apesar da força do texto e de seu caráter atemporal, a encenação por vezes tropeça na repetição e na literalidade, o que enfraquece parte do impacto pretendido.

Marcus Alvisi, nome de peso no teatro brasileiro, assina uma direção de construção precisa e estética refinada. O ritmo — por vezes hipnótico — conduz o público por uma jornada emocional intensa. Contudo, a busca por uma linguagem "teatralmente pura" beira o excesso, com escolhas visuais que, em certos momentos, se sobrepõem à narrativa. Ao evitar as convenções mais populares da teledramaturgia, Alvisi flerta com uma formalidade que nem sempre se justifica criativamente.

Odorico Paraguaçu, interpretado por Diogo Vilela, ocupa naturalmente o centro da narrativa. No entanto, o tratamento dado ao personagem recai mais na repetição do que na reinvenção. Vilela entrega uma atuação segura e tecnicamente precisa, encarnando com competência o político populista e corrupto. Ainda assim, sua performance permanece presa a convenções já exploradas em outras adaptações, sem revelar novos matizes da figura. O resultado é um Odorico previsível, que pouco avança além do arquétipo estabelecido.

O elenco como um todo apresenta um desempenho coeso, embora sem grandes ousadias. A direção de movimento de Juliana Medella resulta em uma coreografia funcional, mas marcada por certa rigidez. Em cena, os gestos parecem mais coreografados do que incorporados, o que enfraquece a entrega física dos atores às suas personagens.

Um dos pontos altos da montagem é, sem dúvida, o apuro visual. A cenografia de Ronald Teixeira e os figurinos de Pedro Stamford compõem um universo estético sofisticado, que amplifica a dimensão cênica da obra. A iluminação de Daniela Sanchez reforça essa ambientação com inteligência, embora, em alguns momentos, o excesso de contrastes e efeitos acabe interferindo na fluidez da narrativa. Essa ênfase na estética, embora tecnicamente admirável, faz com que a encenação se torne mais uma experiência visual do que verdadeiramente dramática. A tentativa de seduzir o olhar com composições grandiosas acaba por diluir parte da densidade emocional e da crítica social que a peça exige.

A trilha sonora, também assinada por Marcus Alvisi, acompanha a lógica de grandiosidade estética presente em outros elementos da montagem. Embora desempenhe um papel relevante na construção da tensão e na amplificação das emoções, há momentos em que soa como um artifício para preencher lacunas dramáticas. Em vez de atuar como extensão orgânica da cena, a música por vezes assume a função de compensar um texto que se dispersa em seu próprio ritmo — o que enfraquece a intensidade emocional da narrativa.

A montagem se apresenta, por fim, como uma farsa politicamente afiada, ancorada em conflitos que permanecem assustadoramente atuais. Apesar de seu impacto visual e do comentário contundente sobre as mazelas da política brasileira, o espetáculo por vezes tropeça em sua própria ambição. A repetição de fórmulas e a ausência de riscos criativos fazem com que a encenação se aproxime mais de uma reinterpretação reverente do que de uma reinvenção provocadora.

Alvisi, Vilela e companhia entregam uma montagem tecnicamente refinada, com notável domínio dos recursos cênicos. No entanto, à medida que a narrativa avança, torna-se evidente que o risco de romper com os clichês e buscar caminhos mais autênticos não foi plenamente assumido. Para um teatro brasileiro que carece de renovação estética e pulsão crítica, fica a sensação de um trabalho que aponta possibilidades, mas hesita em explorá-las até o fim.

 

Por MSenna


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