Não Me Entrego, Não
O espetáculo “Não Me Entrego, Não” carrega consigo o peso simbólico de celebrar os 91 anos de vida e os 70 anos de carreira de Othon Bastos, um dos maiores nomes do teatro e cinema brasileiro. Sua proposta, apesar de profundamente emotiva, não vai além de uma homenagem tradicional, ao se apegar a uma estrutura simples e conservadora. A escolha por uma abordagem mais contida pode ser vista como um reflexo da maturidade de Bastos e da proposta de Flávio Marinho, diretor e autor, que opta por um formato seguro e discreto. No entanto, em um momento onde o público clama por mais ousadia e inovação, a peça se mantém distante das possibilidades tecnológicas e criativas que poderiam ampliar seu impacto.
Essa simplicidade, contudo, acaba sendo uma das qualidades do espetáculo, pois resgata a pureza de uma atuação sem artifícios. A presença de Othon Bastos, com sua energia inconfundível, domina a cena e transmite uma sensação de profundidade e autenticidade. Mesmo sem recorrer a efeitos grandiosos, o espetáculo transmite uma verdade rara, ressoando emocionalmente com a plateia de maneira sincera. Nesse sentido, embora mais comedida, a produção cumpre seu papel de honrar a trajetória do ator e de celebrar seu legado.
A estrutura do espetáculo, com seu monólogo cronológico e a presença de Juliana Medella como uma espécie de memória encarnada, reflete um formato quase didático e linear. Esse caminho narrativo, embora eficaz para relembrar episódios marcantes da carreira de Bastos, limita a capacidade do espetáculo de expandir para uma reflexão mais profunda sobre a cultura brasileira contemporânea. Em vez de desafiar o espectador a questionar o papel do ator e da arte, a peça se restringe a reviver momentos históricos de forma quase anedótica, o que, apesar de ser valioso em termos de memória, não convida a um debate mais amplo sobre as transformações culturais e artísticas que Bastos ajudou a moldar.
Othon Bastos reinterpreta seus personagens icônicos com maestria, mas sua performance, mesmo sendo uma celebração de reminiscências, acaba carregando uma carga de nostalgia. Sua habilidade inquestionável como ator brilha, mas o formato da peça, ao optar por uma sequência de episódios históricos, cria uma experiência que, embora tocante, não apresenta desafios substanciais para o público. A peça revisita momentos marcantes, como o encontro com Glauber Rocha, mas em vez de provocar uma reflexão crítica sobre os rumos das artes, limita-se a reforçar o legado de Bastos sem questionar os contextos em que ele se insere. Essa abordagem, ao se manter em uma zona de conforto narrativo, não aproveita todo o potencial do espetáculo para explorar de forma mais incisiva a relevância das transformações culturais no Brasil.
O cenário, concebido por Ronald Teixeira, é um exemplo claro da escolha por uma simplicidade carregada de significado. Embora despojado em sua concepção, o espaço é repleto de simbolismo e referências essenciais à carreira de Othon Bastos, funcionando como um reflexo sutil, porém profundo, de sua trajetória artística. Esse ambiente minimalista dialoga de forma harmônica com o desenho de luz de Paulo Cesar Medeiros, que, também comedido, reforça a sensação de intimidade e autenticidade. Juntos, cenário e iluminação não buscam o impacto visual imediato, mas, sim, reforçam a proposta de um espetáculo que prioriza a essência da atuação do protagonista sobre os excessos cênicos. Essa sinergia entre os elementos contribui para a construção de um ambiente em que a presença de Othon Bastos é o verdadeiro destaque, conferindo à peça uma atmosfera de profundidade e reverência à sua carreira, sem depender de artifícios externos para transmitir seu impacto.
Apesar do zelo de Flávio Marinho em dar atenção aos detalhes essenciais, criando uma abordagem que busca preencher as lacunas e oferecer ao público uma visão completa da trajetória de Othon Bastos, o autor e diretor opta por uma postura mais contemplativa, que deixa de se engajar diretamente com o cenário cultural atual do Brasil. Em um momento em que as artes enfrentam desafios graves, como a precarização e o desmantelamento das políticas culturais, a peça se faz oportuna ao evocar essa realidade, mas escolhe não abordar de maneira mais incisiva as crises que afetam a produção teatral. Ao invés disso, a escolha por um tom mais otimista e inspirador, representado pela frase de Emily Dickinson, "Eu nasço contente todas as manhãs", reflete a energia positiva de Bastos, como um bálsamo para as dificuldades do cenário artístico, mas não chega a enfrentar as feridas abertas do momento atual. Essa postura, ao invés de enfraquecer a peça, acaba sendo uma escolha deliberada para celebrar a resiliência do protagonista, sem desconsiderar, no entanto, as complexas questões sociais e culturais que permeiam o Brasil.
“Não Me Entrego, Não” é uma celebração emocionante e impecável de Othon Bastos, um dos maiores nomes da cena artística brasileira. Sua atuação magistral, marcada pela profundidade, pela nostalgia e pela verdade emocional, é o ponto alto de uma produção que honra sua trajetória com uma simplicidade cheia de simbolismo e significado. Sob a direção sensível e cuidadosa de Flávio Marinho, a peça oferece uma experiência intimista que cativa e emociona, convidando à reflexão sobre a carreira de um ícone do teatro e do cinema. A dedicação de ambos, Othon Bastos e Flávio Marinho, resulta em um espetáculo que, sem apelar para o grandioso, conquista pela força da sua essência e pela sinceridade de sua homenagem, deixando uma marca duradoura na memória do público.
Por Mauro Senna
Foto: PSales
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