Festival do Rio 2024 - A Quem Eu Pertenço

 

Em "A Quem Eu Pertenço", a diretora Meryam Joobeur nos oferece uma obra que é ao mesmo tempo uma delicada e angustiante meditação sobre a perda, a identidade e os laços familiares, envolta em uma narrativa que ressoa como uma sinfonia trágica na paisagem árida da Tunísia. A história de Aicha (Salha Nasraoui) e Brahim (Mohamed Hassine Grayaa) se desdobra como um poema visual, dividida em três atos que se entrelaçam em uma dança de sombras e memórias.

O filme inicia-se com a inocente expectativa de um casamento, um símbolo de união que rapidamente se transforma em um luto silencioso. A ausência dos filhos Medhi e Amine é palpável, um eco que ressoa na alma de Aicha, enquanto a cinematografia de Vincent Gonneville capta o desespero de um lar despedaçado com uma beleza melancólica. A lente de Gonneville é quase um personagem à parte, capturando a vastidão do deserto como um reflexo da solidão que permeia a vida de Aicha e Brahim. Os quadros, muitas vezes limitados em profundidade de campo, criam um espaço claustrofóbico que nos faz sentir a dor íntima e a desesperança do casal.

A primeira parte, "Aftermath", estabelece um clima de tensão e incerteza. Aicha, na sua desesperada tentativa de proteger Adam (Rayen Mechergui), se vê dividida entre a verdade e a necessidade de esperança. O desespero materno é encarnado na interpretação poderosa de Nasraoui, que transita entre fragilidade e uma força surpreendente. Sua presença é um farol em meio à tempestade, oferecendo uma atuação que é ao mesmo tempo visceral e sutil.

Quando Medhi retorna, trazendo consigo a enigmática Reem (Dea Liane), o segundo ato, "A Shadow Emerges", intensifica a angústia. A presença de Reem, uma mulher síria em situação vulnerável, levanta questões sobre o que realmente aconteceu com os filhos de Aicha e Brahim. A atmosfera se torna mais carregada, e cada interação parece carregada de significados ocultos, criando um labirinto emocional que deixa o espectador inquieto. A habilidade de Joobeur em evocar a ambiguidade moral é notável; o que deveria ser um reencontro se torna um campo minado de sentimentos contraditórios.

O design de som do filme, imersivo e evocativo, complementa a estética visual, amplificando as tensões internas e os medos de Aicha. Os sussurros do vento, os sons da natureza e as conversas distantes se entrelaçam, formando um ambiente sonoro que ressoa com os dilemas dos personagens. Joobeur, em sua estreia, demonstra uma maturidade impressionante, conseguindo equilibrar o realismo brutal com elementos de realismo mágico que sugerem que a verdade pode ser tão mutável quanto a areia ao vento.

A narrativa culmina em uma reflexão sobre pertencimento e identidade, questionando não apenas a conexão familiar, mas também o que significa ser parte de uma sociedade em meio à radicalização. "A Quem Eu Pertenço" é um filme que permanece com o espectador, um testemunho da luta de uma mãe contra forças além de seu controle, e a busca por respostas em um mundo onde a verdade é tão escorregadia quanto a areia do deserto.

Por Mauro Senna

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